Publicado em 19/02/2023.
Por Belinha Almendra.
1 – Você é compositor, cineasta, jornalista, escritor, ator, ilustrador e especialista em Economia da Cultura. Todas estas atividades se complementam em sua trajetória profissional. É possível avaliar, em retrospecto, qual delas foi a primeira a atrair o seu interesse?
Destaco a atividade de ator. Entre os anos de 1976 e 1978 atuei na cena do Teatro Oscar Guinzburg, em Moscou. Tinha 17 anos, estava exilado na União Soviética, hoje Rússia. Cheguei àquele maravilhoso país, em 1970, com a minha mãe, Maria, meu pai, Luiz Carlos Prestes, irmãs e irmãos. Oscar Guinzburg me deu a honra de interpretar Vladimir Maiakovski, numa peça com os poemas que o grande artista revolucionário escreveu no início do século 20. Hoje percebo que cheguei ao teatro por conta da arte de declamação de poesia. Durante os anos que estudei na escola soviética venci vários concursos no bairro e na cidade. Adorava recitar poemas de Alexandre Puchkin e de Mikhail Lermontov, fundadores da literatura russa. Tanto que, em 1980, conquistei o 3º lugar no Concurso Nacional de Declamadores da União Soviética, com “O Navio Negreiro”, de Castor Alves. Uma outra arte que me levou para o teatro foi o canto. Com meu violão participei de festivais da canção política em cidades como Togliatti. Claro, sempre denunciando os crimes da ditadura militar que tomou com violência o poder no Brasil com o golpe de 1964! Tem uma fotografia de uma das minhas apresentações onde canto “Porta Estandarte”, do genial Geraldo Vandré. Para falar a verdade, jamais passou pela minha cabeça que um dia eu seria compositor de quatro concertos para orquestra. Na adolescência meu sonho era ser diretor de filmes documentários. Por essa razão, ao terminar a escola fui estudar no Instituto Estatal de Cinema da União Soviética. Diplomado Mestre das Artes Cinematográficas, voltei para o Brasil, em 1983.
2 – Sua casa era frequentada por personalidades de várias áreas da cultura, do pianista Arthur Moreira Lima a sambista Beth Carvalho e o poeta Ferreira Gullar. Como essa diversidade influenciou a sua visão de arte?
A arte sempre esteve presente na minha casa. Papai foi amigo de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Nelson Pereira dos Santos, Oscar Niemeyer, José Siqueira, Çândido Portinari, Dias Gomes, Beth Carvalho, Taiguara e Carlos Scliar, entre muitos outros. Federico Garcia Lorca realizou um recital em homenagem ao meu pai, em Madri, 10 dias antes de ser fuzilado pelos fascistas espanhóis, liderados por Franco, 1936. Pablo Neruda dedicou um poema à minha avó, Leocádia, e outro a meu pai. Lembro da nossa casa, em Moscou, ser visitada pelo amigo Arthur Moreira Lima, com quem muitos anos depois, entre 1999 e 2006, trabalhei no Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. O poeta Ferreira Gullar esteve em Moscou, para fazer o curso da Escola Política do Partido Comunista. Foi muitas vezes nos visitar. Mas não posso deixar de lembrar do cantor nativista da Rio Grande do Sul, Leopoldo Rassier. Ele, que também veio cladestinamente estudar marxismo em Moscou, foi quem me ensinou a tocar violão, juntamente com meu saudoso irmão Pedro. Veja que citei acima nome de escritor, poeta, músico, compositor, dramaturgo, artista plástico, arquiteto e diretor de cinema! Claro que essa diversidade terminaria por influenciar meus passos. Em especial, abriria horizontes para seguir por vários caminhos.
3 – Ao voltar do exílio, em 1983, você se aproximou de compositores brasileiros de música de concerto, entre eles Guerra-Peixe. Na sua visão, a música clássica vem ampliando o seu público nos últimos anos?
Ao maestro Cesar Guerra Peixe eu fui apresentado pelo compositor Guilherme Bauer. Fiz várias visitas a casa do Bauer, em Petrópolis, em todas elas, lá estava o Guerra. Não vou dizer que fui íntimo dele. Mas mantive um contato regular e respeitoso. Isso me ajudou, recém chegado no Brasil da Rússia, a mergulhar no ambiente complexo da música contemporânea. Corriam os anos da década de 1980, o maestro estava aprendendo a dançar com a célebre Maria Antonieta. Foi muito divertido, por exemplo, ver ele dançar com essa lenda da dança de salão num de seus aniversários. Na época eu era um dos editores do jornal “Cine Imaginário”, publicação dedicada exclusivamente ao cinema brasileiro. Então, realizei uma interessante entrevista com o Guerra sobre música e cinema. Está lá impresso, quem quiser pode conferir: “Cine Imaginário”, Ano 2, nº16, pág. 7, 1987. Na verdade, as vezes nem acredito que andei com o maestro pela Lapa, onde tomamos cachaça. Incrível mesmo foi ele aceitar o meu convite e revisitar o Mangue. Eu estava realizando um trabalho com o escritor Antônio Fraga, autor de “Desabrigo”, sobre aquela antiga zona de prostituição. Na ocasião o Guerra contou detalhes interessantes, sobre os quais não cabe aqui falar. Sobre a música de concerto no Brasil, o seguinte. Vejo grandes dificuldades para a ampliação de público. Somente com a reintrodução do ensino obrigatório de música em todas escolas – públicas e privadas – poderemos melhorar a situação. O trabalho é à longo prazo. Veja. Contamos nos dedos as orquestras que tem qualidade no Rio de Janeiro. Em Moscou, hoje funcionam regularmente 30 orquestras sinfônicas. Todas elas tem igual padrão!
4 – Você lançou livros sobre o Carnaval e o álbum “Casa de Pedra (2019), com o nome artístico de Luiz da Pedra, incentivado por João Roberto Kelly, mestre das marchinhas. Qual a importância da música popular no seu trabalho?
O querido amigo Kelly é o responsável por eu entrar no mundo da música como compositor e letrista. Ele que me encorajou, deu um empurrão. Junto com o violinista Mio Vacite, fundador da União Cigana do Brasil, me levou para um estúdio dizendo: “Hoje vou lhe mostrar as harmonias que você esconde nas suas canções”. Assim, surgiu o álbum “Casa de Pedra” do Luiz da Pedra, pseudônimo que foi inventado por eu morar numa casa de vila no bairro do Catete. Essa casa fica literalmente pendurada numa pedra. São 60 degraus até chegar ao portão de entrada! Voltando para o Rei das Marchinhas. Ele tem um talento voltado para a alegria, para a brincadeira e para a espontaneidade. Esse seu lado nos aproximou. Até porque a música popular está na base de minha formação. Meu imaginário musical de criança, por eu ter morado até os 10 anos em São Paulo, foi preenchido pelos sambas do Adoniran Barbosa e do Paulo Vanzolini. Minha mãe sempre incentivou a todos na família a cantar os repertórios do Vicente Celestino, Chiquinha Gonzaga, Ataulfo Alves, Nora Ney, Noel Rosa, Jorge Goulart, Silvio Caldas, Geraldo Vandré, João Roberto Kelly, Humberto Silva e Adelino Moreira. O folclore brasileiro era uma paixão da mamãe. Ela passou isso para mim. Neste momento estou preparando um álbum com canções em russo e em português. Algumas delas foram traduzidas por meu filho Pedro e outras pelo amigo, antigo organizador dos festivais da canção política de Togliatti, Leonid Parrúta. Este EP é de música popular!
5 – Você acabou de lançar, em janeiro deste ano, o álbum “Fantasia Musical do Jogo do Bicho”. Conte um pouco sobre este seu trabalho.
A “Fantasia Musical Jogo do Bicho” tem quatro movimentos. São eles: “A Invenção do Barão de Drummond”; “O Jogo do Bicho conquista o Brasil”; “O Sonho da Sorte”; e “Brasil, você tá duro porque quer!” Os três primeiros movimentos são 100% de minha autoria. O movimento nº4 é uma orquestração autorizada do samba “Brasil, você tá duro porque quer!” do amigo João Roberto Kelly. Este trabalho é consequência direta dos três livros que publiquei, como especialista em Economia da Cultura, sobre a importância de regulamentar os jogos no Brasil, especificamente: bingos, casinos e o Jogo do Bicho. O Brasil é o único país capitalista do ocidente que proíbe jogos de apostas em dinheiro administrados pela inciativa privada. Optei em compor sobre o Jogo do Bicho porque é uma atividade tolerada em todo território nacional. A lei das Contravenções Penais proíbe, mas não consegue acabar com a prática. Como afirmou o cantor Zeca Pagodinho, numa das entrevistas que fiz com ele: “A proibição é uma tremenda hipocrisia! Devemos é tombar o Jogo do Bicho como patrimônio imaterial nacional.” Nesta obra, que conta com os arranjos do Luiz Eduardo de Oliveira, mostro que podemos desenvolver na música temas atuais. Temos que sair do lugar comum: “eu amei, ela não me amou”; “ela me traiu, eu sofri”; “transamos e foi bom”; ou “amor, meu amor, você é meu amor”. Entendo ser importante para o país o compositor cantar o país, seu povo e as tradições do mesmo. Sobre este tema tenho conversado com as compositoras Silvia Berg e Roseane Yampolschi. Também, com os compositores Hélio Sena, Ricardo Tacuchian e Guilherme Bauer. Todas e todos defensores da nossa brasilidade! Voltando para a “Fantasia Musical Jogo do Bicho”. Este trabalho é bem diferente dos três anteriores, reunidos no livro “Trilogia Heroica”, onde tratei de temas relacionados para com a luta contra o cruel invasor colonial português (século 16), “Piaçaba e Acrescidos”; a luta dos inconfidentes (século 18), “Molhem minha goela com cachaça da terra”; e a marcha revolucionária de meu pai (século 20), “LENDAS – Coluna Prestes”. As personagens centrais destes três trabalhos são o cacique Aimberê, Tiradentes e Luiz Carlos Prestes. Agora, neste último trabalho, ando pelas calçadas de nosso país, me misturo com milhões de brasileiros que todo dia fazem sua fezinha. Aliás, minha mãe sempre jogava no Bicho e… ganhava.