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SÃO PAULO — Na Odisseia de Homero, as estórias populares, repetidas oralmente, além de configurarem um palpitante romance, criaram uma forma de novela de aventura repetida até hoje, no palco, no cinema, na televisão. O poema homérico deu uma semente que energizou a cultura de todo o mundo grego.
Antes de chegar à arte cancionista que Gil e Caetano fermentaram no Brasil, comento um fenômeno curioso da vida cultural da classe média americana:
Existem lá dois escritores excepcionais que são desconhecidos e desprezados por essa classe média dita intelectual. Nos meios que frequentei, tanto Rex Stout quanto Charles Sanders Peirce são ignorados ou desconhecidos.
O desconhecimento de Rex Stout se justificaria por ser ele um autor de novelas policiais, gênero tido como irrelevante, não só nos EUA. Então, é ignorado por esnobismo. Quanto ao segundo, é um caso de desinformação mesmo. Charles Sanders Peirce, fundador da semiótica, é um filósofo e lógico respeitado e estudado em todo o mundo. Também no Brasil, e por intelectuais de respeito, como os poetas concretos e Lúcia Santaella, entre outros.
‘Vivíamos uma ditadura e, quando a Tropicália ressoou nas ondas do rádio, criou uma excitação tão forte que todos os jovens se sentiram armados de um fuzil semiótico que estraçalhou nossos resquícios de Idade Média’
No caso da música popular brasileira inovadora, mesmo no país, é pouco relevante a conta em que se tem esse gênero se comparado à sua importância no exterior. Dando apenas um exemplo: o King’s College. Na London University fundou-se, na década passada um Connect Center, para estudar a cultura ou civilização brasileira, escolhendo-se como fonte seminal de pesquisa desse assunto, simplesmente, a canção brasileira. Repito: a canção brasileira.
Pois bem, é justamente por causa desse fato que o título deste artigo junta Homero, Peirce, Caetano e Gil.
Vivíamos uma ditadura e, quando as primeiras canções da Tropicália ressoaram nas ondas do rádio, criaram uma espécie de rede social avant la lettre, uma excitação sensorial tão forte, que todos os jovens, em todos os estados, se sentiram armados de um fuzil semiótico que estraçalhou nossos resquícios de Idade Média e levou o país, de um salto, para a segunda revolução industrial, com prenúncios da teoria dos quanta de Planck, da improbabilidade de Heisenberg, da entropia da segunda lei da termodinâmica, da linguagem do cartaz e do mosaico da TV.
Tom Zé é compositor e um dos fundadores da Tropicália
Fonte: O Globo