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Execução Pública nas Lives

Shows ou concertos são apresentações musicais para uma plateia. Essa é, sem questionamento, uma das formas mais antigas de execução pública, antes mesmo de existir o conceito de “execução pública” ou os direitos autorais como conhecemos hoje.

Há séculos artistas utilizam essa modalidade para entreter, difundir cultura, tradições e histórias por gerações e entre povos de origens diferentes. Shows que eram feitos em salões de castelos na idade média evoluíram ao longo dos séculos e, hoje, seguem entretendo milhões no mundo todo, nos mais diferentes formatos e lugares.

Algumas gerações são marcadas por fatos históricos, bons ou ruins, que deixam cicatrizes,  mudam hábitos e a forma de viver. Foi assim com as últimas Guerras Mundiais, e certamente será assim depois de uma pandemia mundial. Em breve, vamos olhar para trás e ver como o mundo ficou diferente. Para o bem ou para o mal, mas diferente.

E parte dessas diferenças vem da forma como a música encontrou para continuar tocando. O que seria impensável há 10 anos, hoje graças às plataformas digitais que permitem o acesso a milhões de obras musicais e fonogramas, atravessar esse difícil momento tem sido um pouco mais suave.

É neste cenário que uma ferramenta da mais conhecida plataforma musical do mundo protagonizou o inesperado e, mais uma vez, inaugura um hábito e uma nova rotina. Esse tsunami comportamental do usuário de música foi um fenômeno muito mais forte no Brasil do que em outros territórios, e como é um modelo que deu muito certo, certamente é algo que veio para ficar: as lives musicais A experiência da música ao vivo como conhecemos hoje pressupõe aglomerações. Shows são a forma mais visceral de contato com o artista, é a materialização, ainda que momentânea, da obra musical sendo tocada de forma natural e direta.  Mas, num momento em que aglomerações causam medo e estão proibidas, a música se reinventa e os shows quebram as barreiras e passam a acontecer por live streaming – transferindo a experiência dos palcos para as telas.

Os desafios são muitos quando o tema é aglomeração ou o repensar cuidadoso que será exigido das produtoras nesta retomada das apresentações musicais. Considerando a natureza do vírus e as fases embrionárias do desenvolvimento de vacinas seguras, o prazo de retorno ao que poderia ser considerada uma ‘rotina normal’ ainda é incerto, em especial porque a reabertura destas economias será realizada gradualmente e estará sujeita às medidas restritivas quanto à capacidade de lotação, tal qual já vem sendo experimentado em outros países, como no caso do Theater am Schiffbauerdamm em Berlim (Alemanha) que teve reduzido a capacidade de assentos de 700 lugares para apenas 200¹, bem como a TempleLive em Arkansas (EUA) que teve uma redução de capacidade de público em 80% (oitenta por cento) e mais inúmeras exigências para os espectadores pudessem ingressar no local².

Então, foi durante o isolamento social e diante do ‘novo normal’ que a live streaming – ferramenta tecnológica do YouTube que já estava disponível aos usuários desde 2011– veio acomodar a ansiedade da experiência e senso de comunidade, de pertencimento ao gênero musical e conexão em tempo real.

O conceito de uma live musical segue, portanto, o mesmo conceito que se aplica a um show. É uma apresentação ao vivo. Um concerto musical. Mas, a questão conceitual também implica na geração de direitos que precisam e devem ser respeitados. Estamos falando dos direitos autorais de execução pública que são pagos aos criadores das obras musicais executadas nessas lives.

Logicamente há que se dividir as lives em dois tipos: aquelas com apoio publicitário e as apresentações musicais sem apoio de marcas e/ou anunciantes. Lives sem apoio comercial são as realizadas de forma mais crua, e logicamente, sem a divulgação de marcas de forma proposital durante sua apresentação. As lives com a apoio de marcas/anunciantes, por outro lado, são claramente identificáveis, alcançam diversos anunciantes de produtos e serviços e não deixam dúvidas sobre a ostensividade do seu posicionamento apresentados durante o show transmitido via streaming.

Este apoio publicitário, por muitos, chamado de patrocínio, em nada difere de um patrocínio de uma marca em um show presencial e ao vivo como sempre o tivemos, seja em um lugar aberto ou espaços fechados aptos a tais apresentações musicais, onde a marca é ostensivamente divulgada através de banners, backdrops, cartazes e muitas vezes em painéis no palco ou espaços fechados aptos a tais apresentações musicais. A diferença é que através do ambiente digital, a evidência e destaque conferido às marcas estão ao lado do artista, sendo mencionadas várias vezes por estes e, em alguns casos, com jogo de câmeras – num campo definido de atenção – a tela de computador, celular e/ou televisão.

E, ainda no exercício de reflexão sobre o tema, vale destacar que diferentemente do impacto no show ao vivo, em que a experiência coletiva dilui a atenção do público quanto à apresentação da marca patrocinadora no todo, na live streaming, pela tela do seu computador, televisão ou celular, todas as atenções do usuário estão ali, dedicadas a cada detalhe visual daquela transmissão ao vivo. Assim, é no contexto de isolamento social, no momento da live em que apenas as corriqueiras desatenções provocadas pelo ambiente doméstico rivalizam com a marca anunciante, é preciso admitir que há pouca concorrência pela atenção externa do público consumidor naquela experiência musical virtual – além, é claro, dos comentários compartilhados em tela durante a transmissão. E, é também este o olhar atento e enquadrado na tela que se dedicam os compositores e titulares sobre a transmissão via streaming. E então, o debate conceitual se estabelece: Como preservar os direitos dos compositores na live streaming?

No campo da remuneração de execução pública, é preciso lembrar que o YouTube tem acordo firmado com o ECAD, acordo este que é pactuado sobre os valores arrecadados pelas publicidades inseridas dentro da plataforma, e isso ocorrerá para todas as lives que acontecerem nesta plataforma, independente do modelo ou formato escolhido pelo artista, o que será reportado ao ECAD, da mesma que forma que o YouTube irá reportar o consumo desse vídeo dentro da plataforma, caso a live seja mantida dentro do canal após sua transmissão ao vivo.

Importante esclarecer que uma vez que a live acaba, encerra-se o fator “ao vivo” que configura e define o show, e aquele conteúdo se torna um vídeo, passando então, a receber o mesmo tratamento jurídico de VOD dentro da plataforma, e, portanto, sujeito a outras regras e gerando outros direitos de reprodução que não serão abordados neste artigo.

Muitas vezes tais ações ferem as regras de boas práticas da plataforma, que prevê que as publicidades aconteçam apenas em vídeos que são transmitidos pelo YouTube durante a transmissão ao vivo – live. Mas, aqui não iremos abordar as boas práticas e o que deve ou não ser feito pelo escritório de produção, restando este compromisso como ônus da produtora no planejamento das políticas a serem preservadas junto aos apoiadores/anunciantes e respectivas plataformas.

Hoje o ECAD, Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, prevê a cobrança de shows independente da cobrança de ingressos, e cuja base de cálculo se dá sobre o valor da cota da marca/anunciante. Esse é um entendimento pacificado nos tribunais de todo o Brasil e pelo STJ em diversas decisões nos últimos anos. Portanto, não há que se discutir a legitimidade do ECAD para proceder com tal cobrança. Temos apenas a transmissão via streaming daquele show que, diante de uma pandemia mundial, não pode ser experienciado presencialmente pelo público.

Aqui, vale relembrar o conceito de show apresentado pelo artigo 21 do Regulamento de Distribuição do ECAD ao fixar a distribuição mensal e direta deste: “entende-se como show a apresentação musical cuja principal fonte de atração do público seja o artista que se apresenta.” E o artigo 41 do mesmo Regulamento vai além, detalhando a transmissão exclusiva ou simultânea de shows na internet, e reiterando a divisão com base no roteiro musical com distribuição direta e mensal.

Os direitos de execução pública pagos pelo YouTube através do acordo firmado com o ECAD não devem ser confundidos com a contratação de apresentações musicais pelas marcas em live streaming. Fato é que muitas vezes tais contratações e apoios viabilizam financeiramente a realização daquele evento musical e, portanto, devem ser enquadrados no mesmo conceito dos patrocínios de uma marca para a realização de um show na praia ou em um parque ou estádio/espaços fechados, ainda que transmitido simultaneamente na internet.

Os direitos relativos ao acordo com a plataforma estão alinhados ao entendimento do relator do recurso especial movido pelo ECAD contra a Radio Oi, Ministro Villas boas Cuevas, segundo o qual a internet deve ser considerada como um local de frequência coletiva. Assimilados os conceitos e a nova realidade de consumo de shows musicais pela plataforma do Youtube, é clara a existência e a necessidade de aplicação da cobrança calculada sobre o apoio financeiro ou do patrocínio recebido pelo artista quando da realização da live musical, sendo a divisão com base no roteiro musical apresentado.

As lives, portanto, não devem ser entendidas como uma nova possibilidade, mas como uma evolução do modelo do show tradicional que conhecemos. Mantem-se as mesmas características jurídicas (contrato de prestação de serviços artísticos), transportando a experiência do ‘ao vivo’ para uma plataforma virtual que quebra as barreiras e potencializa o alcance e democratização musical, mas permite o consumo da apresentação do artista e da sua música num ambiente digital e proporcionando uma nova experiência ao vivo.

Não há que se negar a existência do direito, mas sim a necessidade de entender que a tecnologia veio para (re)criar os atuais modelos de consumo que permitem possibilidades novas e democráticas, e estas devem coexistir com os direitos dos criadores e todos os envolvidos no processo criativo.

Por fim, reconhecendo que a realização de shows com apoiadores e/ou marcas anunciantes já encontra respaldo de cobrança junto ao ECAD, precisamos somente revisitá-la em conceito quanto à transmissão do “ao vivo” via streaming e, assim, admitir as palavras de Clay Shirky: “A verdadeira revolução não acontece quando a sociedade adota novas ferramentas, e sim quando adota novos comportamentos”. Que possamos então abraçar os novos comportamentos, sempre com respeito aos direitos autorais e mantendo a cultura e a criação intelectual vivas.


Por:

Gustavo Gonzalez – Diretor de Relações Internacionais e Business Affairs Abramus
Raquel Lemos – Sócia Fundadora, Lemos Consultoria e Artis Cultural

¹ “Iconic Berlin theater looks very different with seats removed for social distancing”, NBC News. Link: https://www.nbcnews.com/health/health-news/live-blog/2020-05-27-coronavirus-news-n1215286/ncrd1215671#blogHeader. Acessado em 02 de junho de 2020.

² “America’s First Pandemic Concert Shows How Far the Live-Music Industry Has to Go”, Rolling Stone. Link: https://www.rollingstone.com/music/music-news/arkansas-pandemic-concert-travis-mccready-1002279/. Acessado em 02 de junho de 2020.

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