A maior associação de música e artes do brasil
Por Sérgio Martins, jornalista e crítico musical
Tempos atrás, em uma entrevista para a (extinta) revista semanal Época, Caetano Veloso criticou o queixume excessivo dos críticos musicais em relação ao fenômeno axé music. Para o cantor e compositor baiano, era um contrassenso os jornalistas entoarem “Alalaô/ Mas que calor…” e reclamarem das letras dos grupos do pop baiano.
Eu não creio que um sujeito passe o ano inteiro cantando marcha de carnaval (ao contrário dos hits de axé, que eram massacrados diariamente nas rádios e na televisão). Mas, por outro lado, nunca encarei a turma do axé como a vinda do terceiro anticristo.
Pelo contrário, até ensaiei minha coreografia “Coisinha de Jesus” – para quem não conhece, o limitado dançarino vivido pelo comediante Marcelo Madureira no Casseta & Planeta – em shows do Olodum e da Banda Mel, no início dos anos 1990. Estive também entre o grupo de repórteres que viu Daniela Mercury sacudir – literalmente – o Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 1992 e, dali, partir para o posto de principal musa pop daquele período.
A axé music completa 40 anos no dia 17 de fevereiro. A data coincide com o lançamento Magia, disco do trepidante Luiz Caldas, de onde foi pinçada Fricote, o grande hit do carnaval baiano de 1985. Hoje proibida por versos que soam racistas e agressivos ao público feminino (o próprio Luiz, aliás, passou tempos se negando a falar sobre a canção), ela acabou divulgada em rede nacional graças a uma daquelas histórias boas demais para serem verdade.
Roberto Sant’Ana, um dos principais produtores da história da MPB, foi até o escritório de Chacrinha para mostrar a música de Luiz Caldas. O comunicador escutou e ficou intrigado com o verso “quando passa na Baixa do Tubo”. Perguntou a Roberto sobre o que se tratava e o produtor explicou que se tratava de um termo chulo (não era: na verdade, fingiu não saber o que era “Baixa do Tubo”, uma ladeira que divide o bairro de Luis Anselmo e Cosme de Farias, em Salvador). “Gostei, traz o rapaz na semana que vem”, disse o homem da buzina. Luiz viu, veio e venceu, tornando-se a sensação musical do país em 1985.
Voltemos à axé music. No ano em que completa quatro décadas, ela é homenageada em lançamentos que fazem referência ao cancioneiro que trazia versos como “Aê/ Aê/ Aê/ Ê/ Ê/ Ê” (de Prefixo de Verão, da Banda Mel). A cantora Márcia Castro lançou, no final de 2024, o álbum ao vivo Roda de Samba Reggae Vol. 1, no qual recupera sucessos dos blocos afro-baianos e mistura com canções de sua própria lavra.
Emanuelle Araújo, que foi vocalista da Banda Eva, prossegue na releitura axezeira com o single Tem Não, dueto com Tatau, ex-vocalista do grupo Ara Ketu. E, nos últimos meses, as plataformas de streaming foram e serão assoladas por figuras históricas da música baiana como Tuca Fernandes (ex-cantor do Jammil e uma Noites), Daniela Mercury, Bell Marques, Banda Eva, Banda Cheiro de Amor, Banda Mel, É o Tchan, Ricardo Chaves… Mais um pouco e casas como Lambar e Reggae Night (templos do axé em São Paulo) e drinks como Capeta voltam na pauta do dia.
O que é axé?
Mas, afinal, o que é axé? Axé não é um gênero, mas, sim, um movimento. Suas origens estão ligadas a Wesley Rangel, advogado e administrador que, no início dos anos 1980, criou o estúdio WR.
As instalações resolveram um problema de logística que assolava os músicos e cantores baianos daquele período, que tinham de esperar vaga nos estúdios de São Paulo e do Rio de Janeiro se quisessem lançar seus discos. O surgimento do WR não só ajudou a produção local como abrigou uma equipe de vocalistas, instrumentistas e compositores que viram ali a chance de mostrar seus trabalhos.
Dali, por exemplo, saiu um certo Carlinhos Brown, que se tornou referência no pop e na MPB. Praticamente tudo que se escutou naquela década – e que ainda não era conhecido como axé – saiu das salas da WR: o samba-reggae do Olodum, o galope de características caribenhas do Chiclete com Banana, o pop da Companhia Clic (que tinha Daniela Mercury nos vocais), as salsas, lambadas e reggaes de Gerônimo e, claro, o fricote de Luiz Caldas.
Coube ao jornalista Hagamenon Brito, então crítico do jornal A Tarde, de Salvador, a missão de fazer troça do grupo, chamando-os de “bandas axé”. Posteriormente, o que era motivo de chateação virou símbolo de um novo tempo. Axé music virou um rótulo poderoso e uma fonte de dinheiro.
O aumento da produção local criou uma cena de alta rotatividade e autossuficiente. O fricote de Caldas deu mostras de cansaço? Pois então vieram os blocos afro e as bandas surgidas dos trios elétricos de Carnaval. A receita pedia inovações? Vamos então transformar as vocalistas desses trios – Margareth Menezes, Daniela, Ivete Sangalo & cia. – em protagonistas.
Foi nesse período que a axé music despertou minha atenção. Primeiro, por conta dos discos do Olodum (e olha que dava um trabalhão pesquisar personagens como a rainha Ranavalona, presente em letras como a de Madagascar), que chegavam em São Paulo pela gravadora Continental. Depois, numa ida a Salvador, em setembro de 1991, quando a Banda Mel tocou para 100 mil pessoas em um estacionamento da cidade.
No ano seguinte, Daniela Mercury lançou O Canto da Cidade, seu segundo disco, pela Sony Music. Nos anos posteriores que visitei a cidade, fui impactado por cantoras que fizeram apenas sucesso local, como Raquel Nancy e Silvia Torres. Um dos momentos preciosos do ano era ser convidado para o lançamento de algum artista de Salvador e se embrenhar na sinfonia de batuques e galopes da cidade.
A música sertaneja atual traz muito do know-how da Bahia na hora de fazer a cena local funcionar, exportar as suas principais festas (alguém se lembra das Micaretas?), entupir o mercado de discos ao vivo e assimilar outros gêneros musicais para o seu mundo – no caso da axé music, de astros sertanejos ao pop da segunda metade dos anos 1990, tudo acabou no trio elétrico. Durval Lelys, cantor e guitarrista do Asa de Águia, entrava de moto no palco porque viu o vocalista do furioso grupo de heavy metal Judas Priest fazer o mesmo.
Contudo, o excesso de dancinhas que, no fundo, mudavam apenas o nome, de bandas de qualidade duvidosa e a infestação de discos ao vivo praticamente esgotaram o universo pop baiano. O estúdio WR também perdeu a preferência dos popstars locais, que alçaram o primeiro escalão e tiveram a primazia na hora de gravar nos principais centros musicais do Sul do País.
Embora tenha experimentado um período de baixa, a axé music nunca perdeu seu status junto à comunidade pop. Ela se faz presente, por exemplo, até em trabalhos de artistas que não se denominam até. O compositor e cantor capixaba Silva perpetuou um baile no qual revivia os sucessos do cancioneiro baiano – e aqui se deu ao luxo até de colocar nomes pré-axé, como Moraes Moreira.
O tal pagodão baiano, surgido inicialmente nas danças e na força percussiva de grupos como É o Tchan, é assimilado tanto por veteranos do Carnaval (Pula Alto, da Banda Eva, é puro suco do pagodão local) como se faz presente em trabalhos da cantora Rachel Reis e do ÀTTØØXXÁ, grupo que faz uma combinação de pop, soul music, pagode baiano e paulista.
Mesmo as canções que eram tidas como infames naquele período – Bomba, Maionese – hoje gozam de status cult, tornando-se memes e vídeos nas redes sociais. Por conta de seu diferencial rítmico e sua capacidade de adaptação, a axé music tem muito mais fôlego do que as sonoridades atuais (sorry, prefiro um pagodão ao excesso de vozes distorcidas que se fazem presentes em subgêneros do rap).
A axé music é divertida, seus músicos estão entre os melhores do mercado e sua variedade rítmica faz com que eu retorne aos meus rebolados “Coisinha de Jesus”. Mas não esperem que eu passe o ano inteiro cantando “Aê/ Aê/ Aê/ Ê/ Ê/ Ê”…
Artigo publicado originalmente em 3 de fevereiro de 2025, no jornal Estadão