Por Roberto Corrêa de Mello
Presidente da ABRAMUS – Associação Brasileira de Música e Artes; ex-membro do Conselho Nacional de Direito Autoral; titular da Mello Advogados Associados
Especial
Há três anos entrou em vigor o novo Código Civil, que constitui o mais moderno instrumento da lei civil e comercial já criado no Brasil. No entanto, não obstante a natureza e a eficácia da codificação, muito pouco se atentou para a força imperativa que se aplica às contratações.
O meio artístico aperfeiçoa diariamente contratos e dentre eles talvez o mais freqüente seja o contrato de edição musical. Sendo assim, vamos aqui tratar do assunto no que diz respeito à apreciação dos contratos de edição musical, a partir das novas regras e princípios estabelecidos pelo Código Civil, que trazem para o centro da discussão problemas importantes com os quais nos defrontamos cotidianamente e que convergem para uma nova abordagem pertinente à formação, celebração e execução dos referidos contratos de edição.
O legislador brasileiro, ao elaborar o novo regramento codificado, tratou de bem dimensionar as contratações com a observação de três princípios basilares, a saber: Finalidade Social; em contraste com o sentido individualista que condicionava o Código Civil anterior; Ética, pelo qual se confere ao juiz não só poder de suprir lacunas, como também o de resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto; e operabilidade, para que o direito possa ser realizado. Este princípio contém o da concretitude, no sentido de que não se deve legislar em abstrato para um indivíduo perdido na estratosfera, mas para o homem cidadão, para aquele que tem obrigações sociais, para as relações familiares, para o exercício dos direitos à contratação lídima, em outras palavras, para atender às relações sociais ao direito subjetivo que se exterioriza na materialidade da situação individual (direito subjetivo material), nunca ao direito subjetivo em abstrato.
Ato Jurídico e Negócio Jurídico
Não por outra razão, foi introduzida uma nova compreensão do “ato jurídico”, cuja acepção é lata, e do “negócio jurídico”, cuja compreensão, por sua essência, altera o dimensionamento e as conseqüências de um e outro. Vejamos:
O Ato Jurídico consiste na manifestação de vontade onde o agente controla as conseqüências. Ele pode ser lícito – ato simples sentido estrito; ou ilícito – ato ou fato contrário à norma (imperativo autorizante).
* Observação: ao Ato Jurídico que não seja Negócio Jurídico aplicam-se as regras atinentes ao Negócio Jurídico / artigo 185.
A conceituação do Negócio Jurídico está lastreada basicamente no princípio da boa fé, do que decorre a eficácia ou a ineficácia, a nulidade, a anulabilidade e, mais além, a revisibilidade do ato que se praticou. Para bem explicitar tal alcance inerente ao negócio jurídico, é preciso lembrar o que consta nas regras do Novo Código Civil:
Artigo 110 – A manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feita a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento.
Artigo 112 – Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
Artigo 113 – Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Desta conceituação decorrem também os defeitos do negócio jurídico, que podem ser genericamente assim compreendidos e divididos em:
Vícios do Consentimento (artigos 138 a 157) – Erro; Dolo; Coação; Estado de perigo/lesão; Negócio anulável (artigo 171, II); e Vício Social (artigos 158 a 165) – fraude contra credores Isto tudo possibilita a “revisibilidade dos contratos”, principalmente no que diz respeito ao nosso tema (contratos de edição musical) pelo fato de serem de execução permanente.
Revisibilidade dos contratos de edição
– uma vez que os contratos de edição têm execução continuada (principalmente havendo cessão de direitos); Execução Continuada – os contratos de edição trazem via de regra em seu bojo a cessão de direitos, que determina a continuidade da execução contratual pelo tempo que perdurar o direito autoral, antes que caia em domínio público.
A Formatação
Os contratos de edição seguem basicamente três princípios:
1. A finalidade social do contrato;
2. O princípio da comutatividade (para delimitar direitos e obrigações);
3. Os usos e costumes (aí compreendidos, para o tema em debate a praxis do mercado musical) exatamente para aferir a propriedade, a impropriedade e a possibilidade de se rever aquilo que se pactuou em favor ou em desfavor de um ou de outro contratante.
Pode-se invocar eventuais vícios ou impropriedades dos contratos de edição musical, na medida em que, quando da explicitação dos motivos que ensejam a contratação, deve-se indagar o porquê das avenças que em seguida deverão estar explicitadas no corpo do contrato.
É a razão da existência dos denominados “considerandos”, que explicam a quem quer que seja e principalmente ao Estado-Juíz porque as partes celebraram determinado contrato. Assim, para a formação dos contratos impõe- se:
* a explicitação dos motivos que ensejam a contratação (daí compreender-se a razão de ser dos”“considerandos”, cuja explanação é mais importante do que as cláusulas contratuais propriamente ditas);
* o esclarecimento do que e como se pactua, exatamente para bem dimensionar os direitos e obrigações de cada qual, autor e editor, com a finalidade precípua de estabelecer o que podemos denominar de direito de seqüela (forma de remuneração de cada qual);
* a forma de execução permanente, ou seja, a maneira de se executar aquilo que se pactuou.
Observadas essas premissas fundamentais, é importante frisar que nos contratos de edição musical é essencial estar expressa, sem restrições, a obrigatoriedade de se obter autorização prévia do autor para a utilização de sua obra em veiculações específicas, de tal sorte que ele possa exercitar plenamente o tal direito de seqüela, até pelo fato de os negócios em direito autoral serem sempre aperfeiçoados restritivamente. Por isso é que não se pode ferir o princípio da segurança dos negócios jurídicos.
A lesão
O Novo Código Civil introduz como norma codificada uma figura criada pretorianamente que se denomina lesão. Não por outra razão, o legislador inseriu no corpo da Lei Substantiva o artigo 157 que explicita o seguinte:
Artigo 157 – Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
Parágrafo 1º. Apreciam-se as prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.
Parágrafo 2º. Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
O Ato ílícito e do Abuso de Direito
É sempre necessário lembrar que os contratos de edição devem observar os princípios inicialmente mencionados e dizem respeito a uma compreensão mais ampla do que se denomina ato ilícito e abuso de direito, figuras sempre consagradas pelo direito brasileiro e que mereceram novo revestimento jurídico com a edição do novo Código. Assim, estão dimensionados no âmbito do Direito Civil:
Artigo 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Artigo 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Todas estas considerações servem para demonstrar que os contratos, sem exceção e, no caso em apreço os contratos de edição, devem guardar a observância dos limites impostos pela finalidade social, pela finalidade econômica, pela boa-fé e pelos bons costumes, sob pena de se inviabilizarem como negócio jurídico ou comportarem a revisibilidade do negócio jurídico que se praticou, intervindo o Estado-Juíz ou o árbitro para reestruturar a relação jurídica que estabeleceu em contrato, dando a cada um o que lhe pertence e evitando que se perpetue uma relação que possa onerar excessivamente uma das partes, desestabilizando a relação contratual.
Considerações finais
Em suma, a partir dos aspectos que comentamos aqui – Boa-fé objetiva; Finalidade Social dos Contratos; Estabilização da Comutatividade – para evitar a onerosidade excessiva; A lesão grave; O Ato Ilícito e o Abuso de Direito; e A revisibilidade Contratual, trouxemos à apreciação dos leitores deste segundo número do Informativo ABRAMUS, os princípios que foram introduzidos pelo Novo Código Civil e que afetam direitamente os contratos já celebrados e que tem execução continuada. Nosso principal objetivo é demonstrar que o legislador brasileiro, ao tratar dos negócios jurídicos, cuidou de permear as relações sociais por cuidados inerentes às pactuações, não só para viabilizálas em sua concretitude plena, como para dimensionar com certeza e segurança os direitos de cada qual, evitando-se assim o enriquecimento ilícito de qualquer das partes, promovendo a equidade como imperativo de Justiça e a boa distribuição do Direito.